Um dos mecanismos previstos no suposto plano de golpe de Estado articulado por Jair Bolsonaro e seus aliados era a adoção da Garantia da Lei e da Ordem (GLO). A medida estava descrita num documento encontrado pela Polícia Federal na sala do ex-presidente na sede do PL, em Brasília. Na avaliação de especialistas, essa manobra buscava uma mobilização discreta das Forças Armadas para garantir o sucesso do golpe.
Esses documentos mostram que os golpistas imaginavam que, com a decretação de uma operação de Garantia de Lei e da Ordem, eles poderiam mobilizar os setores das Forças Armadas que estavam comprometidos com o projeto para tomar o poder, respaldado inclusive por oficiais da ativa”, aponta a cientista política Adriana Marques, coordenadora do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (DGE/UFRJ).
Prevista no artigo 142 da Constituição Federal, a GLO garante a presença militares em situações de perturbação da ordem e após o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública.
Ela precisa ser autorizada pelo presidente da República e foi adotada ao longo dos últimos anos em grandes eventos, como Eco-92, Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016, e para prover a segurança pública, sobretudo nas favelas, em operações no Complexo da Maré e da Penha.
“Com a GLO, o controle das vias, dos acessos, e da capital estaria com os militares. Formalmente seria o Exército, mas o que podemos interpretar é que a suposta operação de GLO seria na prática transformar aquelas unidades do Exército em instrumento dos militares bolsonaristas. Os acampamentos seriam mantidos e um segundo passo seria escalar para um estado de sítio”, afirma o cientista político Eduardo Heleno, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
“A GLO serviria para encobrir um golpe de Estado clássico, com os tanques na rua e afins. Já era notório há bastante tempo que não haveria reconhecimento internacional e muito menos apoio a qualquer tipo de intervenção, militar ou não, para romper com a democracia no Brasil”, acrescenta o historiador Eduardo Svartman, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Herança da Ditadura
De acordo com analistas, a GLO é um resquício da ditadura militar brasileira (1964-1985) e da presença das Forças Armadas na vida política do país, mesmo com o restabelecimento da democracia.
“Houve um lobby bastante efetivo das Forças Armadas na elaboração da Constituição, para evitar que elas ficassem restritas apenas à defesa da soberania do país contra ameaças externas”, comenta Marques.
Esse lobby pós-ditadura garantiu aos militares a presença em ações variadas ao longo dos últimos 40 anos. Dentro da caserna, há o entendimento de que as operações de Garantia e Lei da Ordem podem ser benéficas, a depender do objetivo.
“Eles não gostam de greve de policiais, por exemplo. Agora, quando se trata de grandes eventos, com começo, meio e fim, e que não envolve desgaste da imagem das Forças Armadas, eles gostam. É onde eles são elogiados como garantidores da segurança pública no país”, explica Marques.
Logo após a sua eleição em 2022, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva descartou o uso da GLO em ações de segurança pública. Mas mudou de ideia em novembro do ano passado, quando adotou a medida numa tentativa de conter o crime organizado em portos e aeroportos do Rio de Janeiro e de São Paulo.
“O principal problema da GLO é a brecha que ela abre para ‘operações internas’, isto é, na política doméstica. A posição de poder efetiva está com quem assina uma GLO. Portanto, para se evitar esse problema, basta não as decretar”, pondera o sociólogo Piero Leirner, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).
“Há o entendimento de que só as Forças Armadas têm competência para resolver situações em que há uma suposta ausência de Estado. Isso é uma construção de longa duração e difícil de desmontar. Me parece evidente que o Estado tem que botar algo no lugar que preencha esse ‘vácuo'”, complementa ele.
Svartman afirma ainda que o emprego recorrente das GLOs pelos militares em ações da sociedade civil dá poder à corporação. “A mobilização das tropas para resolver problemas de toda ordem, com greve de policiais e rebeliões, dá um elemento de barganha às Forças Armadas”, avalia.
Relação dos militares com governo
Após as revelações da PF, Lula não criticou a cúpula militar. O ministro da Defesa, José Mucio, defendeu a instituição e disse que “só um grupo” de militares desejava o golpe. “A atual cúpula é sócia dessa versão de que existiam ‘militares golpistas localizados’. Isso segue a atual direção do governo de estabelecer uma relação acomodada com as cúpulas militares”, salienta Leiner.
O sociólogo argumenta ainda que o poder civil não tem, neste momento, força institucional para enquadrar os militares. “A opinião pública, nessa matéria, não conta absolutamente nada. Isso é o jogo profundo dentro do Estado. E, no meu entendimento, o Estado, mais que o governo, está imbricado em um arranjo permanente em que os militares são intocáveis”, analisa Leiner.
“Até agora, a postura do Ministério da Defesa foi de apaziguar e pacificar relação com os militares. Mas a relação em uma democracia entre o poder político e as Forças Armadas deve ser de obediência. O governo precisa garantir a punição dos envolvidos, afastar quem é da ativa, para que sirva de exemplo”, afirma Marques.
A cientista política reforça a importância da discussão sobre o artigo 142. “Ele ocupa um papel central em todo esse imbróglio que nós vimos. Essa é uma discussão que deve ser feita no Congresso.
Alguns parlamentares tentaram, mas o próprio Ministério da Defesa articulou para engavetar a medida”. Em janeiro do ano passado, Mucio afirmou que o tema deveria ser discutido com “quando as coisas estiverem mais serenadas, mais calmas, mais pacificadas.”
Para Eduardo Heleno, Lula, o Ministério da Defesa e os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica precisam “separar o joio do trigo”. “A resposta dever ser republicana, democrática e institucional, como deve ser em qualquer governo eleito pelo povo. Não se trata de vingança ou revanchismo e sim da promoção de justiça, e no caso do Exército, a recuperação da disciplina e hierarquia, seus pilares fundamentais, e da honra institucional.”
Autor: Guilherme Henrique/Band Jornalismo