Ao menos 110 mil servidores públicos, sendo 43,5 mil profissionais do setor público federal, 68,4 mil dos servidores estaduais do Rio Grande do Sul e mais de mil bombeiros de todas as unidades da federação participaram durante as enchentes em cidades gaúchas do que especialistas dizem ter sido a maior mobilização da força de trabalho pública em uma catástrofe climática.
Em geral, servidores públicos são obrigados a atender às demandas do estado em casos emergenciais, o que, segundo especialistas, evidencia a importância de ter profissionais concursados.
Essa obrigatoriedade é prevista em estatutos do servidor, como no caso do RS, cuja lei diz que os profissionais podem ser convocados para cumprir funções extraordinárias. Servidores da Brigada Militar tiveram férias suspensas e mesmo os da reserva foram chamados para atuar no pior período das cheias.
O número servidores envolvidos não leva em consideração os funcionários públicos municipais, pois ainda não há dados compilados em várias das cidades atingidas
Foi a primeira vez que bombeiros de todos os estados do país e do Distrito Federal estiveram envolvidos em um episódio como esse, de acordo com o coronel Hélio Gonzaga Júnior, coordenador do Gabinete de Gestão de Crise da Ligabom (Conselho Nacional dos Corpos de Bombeiros Militares do Brasil).
Relatório da entidade publicado em 15 de maio, no auge da calamidade, indica que 539 profissionais de 23 estados estavam no RS, além de 253 militares, policiais e técnicos da Força Nacional.
Parte dos servidores gaúchos do setor administrativo tiveram a função remanejada para atender à população na ponta, atuando com recebimento de doações e apoio em abrigos, por exemplo, afirma Danielle Calazans, secretária de Planejamento, Governança e Gestão do Rio Grande do Sul.
“Profissionais foram realocados para as atividades que mais tinham necessidade. Se um dia fosse na Defesa Civil, as secretarias faziam um levantamento e encaminhavam o servidor para lá. O resto [dos profissionais] continuou atuando no andamento do estado.”
Foram 66 mil voluntários cadastrados para atuar no Rio Grande do Sul. A solidariedade também teve que passar pela gestão pública, sobretudo durante os resgates, já que os servidores da Defesa Civil e bombeiros são treinados para a função, segundo Aragon Dasso Junior, professor de administração pública da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Nas enchentes, eles coordenaram as ações de salvamento.
O professor diz que a própria experiência de longo prazo desses servidores, além do conhecimento sobre o território onde atuam, permitiram uma melhor resposta às enchentes.
“Notamos níveis diferentes de acúmulo de experiência e de compromisso. Existe o espírito público, mas também um liame jurídico que estabelece um vínculo dessa natureza. Foi necessária a atuação de voluntários, mas o estado foi o coordenador do processo.”
A gestão do RS diz considerar essas obrigatoriedades do profissional público estável e estuda realizar novos concursos para servidores permanentes para uma próxima fase no projeto de reestruturação do estado.
De acordo com Calazans, no entanto, o estado deve fazer contratações temporárias para atender a demandas imediatas nesse período inicial de reconstrução.
A pasta diz que pretende tocar um projeto de transformação de cargos públicos para atrair novos profissionais. O objetivo é criar carreiras transversais, que podem atuar em mais de um órgão, e mudar regras de progressão de função.
“Devido à calamidade, temos a possibilidade de contratação temporária. Mas não é o que vai resolver o estado. Temos certeza de que é necessário correr para reestruturar as carreiras para torná-las mais atrativas e efetivamente fazer concurso”, afirma a secretária.
A discussão sobre como se planejar contra catástrofes ambientais deve envolver a gestão de pessoas na administração pública, segundo Fernando Coelho, professor de administração pública da USP (Universidade de São Paulo).
Ele diz que, além do Rio Grande do Sul, outros estados e municípios devem ampliar a força de trabalho que atua nessas emergências devido a um possível aumento de demanda, consequência das mudanças climáticas.
Isso incluiria também uma maior articulação entre servidores de diferentes entes nacionais, como ocorreu durante as chuvas no estado.
“Da mesma forma que organizamos, no governo federal, uma Força Nacional para emergências, também devemos começar a pensar em outras formas de mobilização de servidores públicos em prol de uma cooperação federativa, interestadual e intermunicipal, levando em consideração que essas eventualidades vão se tornar mais frequentes.”
Segundo o professor, o estado e a União também devem dar apoio a municípios que tiveram a estrutura administrativa afetada pelas enchentes, tanto os danos à estrutura física como a perda de materiais. No total, 476 cidades gaúchas foram atingidas.
A gestão afirma que pretende fazer um levantamento de municípios afetados para ajudá-los a reconstruir o plano diretor e reformular prédios por meio de permutas e parcerias. Esse mapeamento ainda não começou, de acordo com a alazans, porque o estado tem aportado recursos para necessidades imediatas.
O professor Fernando Coelho diz que o principal desafio para prevenir as próximas catástrofes é criar uma cultura de planejamento no Brasil.
Em entrevista à Folha, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), diz ter reconhecido o alerta sobre o aumento do nível de chuvas, mas que não investiu mais recursos na prevenção porque outras pautas se impunham.
“Estamos agora no momento de comoção. Quando está todo mundo falando sobre isso, você tem que propor soluções”, diz Fernando Coelho. “Em alguns meses, quando a pressão popular diminuir e começarem a surgir outros tipos de demanda, a tomada de decisão não necessariamente vai levar em consideração esse conjunto de variáveis.”
Fonte: Folha de S. Paulo