A rotina de um grupo de médicos que atua na central estadual do Samu, em Porto Alegre, não é marcada apenas por plantões mais curtos do que deveriam ser, como revelado pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI). Ex-enfermeiro da central, que informou o caso ao GDI depois de 13 anos atuando no setor e testemunhando as irregularidades cometidas pelos profissionais da regulação, Cleiton Felix descreve outras situações que presenciou. Como ele, o coordenador do Samu estadual em Porto Alegre, o médico Jimmy Luis Herrera Espinoza, também relata episódios semelhantes.
Um dos casos narrados por Felix mostra como parte dos médicos consegue cumprir um terço da cargas horária e, ainda assim, receber salário integral. A médica Tarine Christ Trennepohl tem dois contratos em vigor, de 120 horas mensais cada. Com isso, recebe salário de R$ 23.133,37. No extrato de relógio-ponto de um destes contratos, consta que ela trabalhou 117 horas no mês de julho. Entretanto, de acordo com as informações dos relatórios de atendimento da médica, ela teria cumprido apenas 51 horas.
As faltas e horas abonadas foram justificadas com descrições como “problema na marcação do relógio de ponto” e “compensação autorizada”.
Procurada pela reportagem, a médica não explicou quem abonava as horas não trabalhadas.
12 atestados em um mês
Coordenador do Samu, Jimmy Herrera relata outra situação que chama a atenção. Ele explica que os computadores utilizados pelos médicos reguladores têm um sistema que bloqueia os equipamentos depois de 10 minutos sem qualquer movimentação. Isso evita que outros usuários tenham acesso à máquina, mas também indica que o profissional não está no posto de trabalho. Quando essa inatividade é detectada, o profissional pode ter de se explicar a um gestor.
Uma médica, que Herrera não identificou, teria usado de um artifício para burlar esse sistema. Ao se ausentar do posto de trabalho, a reguladora teria colocado uma garrafa de água sobre o teclado, pressionando algumas teclas. Assim, impedia o bloqueio por inatividade.
— Essa médica acabou sendo transferida. Recentemente, soube que ela foi exonerada — conta Herrera.
Grandes quantidades de atestados também chamaram a atenção do coordenador no caso de outra médica, que ele também não identificou em entrevista. Segundo Herrera, ela teria apresentado 12 atestados de uma mesma médica em um mês. Consultada, a profissional afirmou ter assinado apenas um atestado e não reconheceu sua assinatura nos outros 11.
— Acredito que ela estava sendo lesada, com seu receituário e carimbo sendo usados sem conhecimento pela médica do Samu. Foi aberto processo administrativo e essa médica reguladora pediu exoneração — garante o coordenador.
Câmeras para coibir ação
Em entrevista ao programa Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha, nesta segunda-feira (28), a secretária estadual da Saúde, Arita Bergmann, falou sobre as irregularidades no cumprimento de horários por parte de um grupo de médicos do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em Porto Alegre.
Para coibir a prática, Arita afirmou que serão instaladas câmeras de monitoramento nos locais de entrada e saída da central de atendimento da Samu na Capital. De acordo com a titular da Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS), contudo, ainda não há previsão para a instalação dos equipamentos.
— Alguns, por não serem responsáveis com o contrato de trabalho, acabam tendo que gerar um controle maior sobre os demais, que realizam o serviço de forma correta — lamentou a titular da pasta.
Contrapontos
O coordenador do Samu no Estado, Jimmy Luis Herrera Espinoza, confirmou possíveis descumprimentos de horário.
O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) afirmou que vai instaurar uma sindicância para apurar as condutas dos médicos que descumpriram horários do plantão durante atendimento no Samu.
O GDI também procurou a médica Tarine Christ Trennepohl, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
A Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS) instalou uma comissão de sindicância após o contato do GDI.
O Ministério da Saúde afirmou que irá fazer uma visita técnica à central estadual do Samu em Porto Alegre para verificar as informações trazidas pelo GDI.
Veja a nota completa da SES-RS
“A SES não compactua com qualquer irregularidade na administração pública.
Este Gabinete da SES teve ciência sobre estes fatos na quarta-feira ao meio-dia e, de imediato, determinou a abertura de processo administrativo, que culminou com a assinatura da Portaria n. 802/2023-DGESP instaurando sindicância para apurar eventuais irregularidades já na quinta-feira, dia 24 de agosto, publicada nesta sexta-feira no Diário Oficial do Estado.
Na presença de Diretores da SES e de representante da Procuradoria-Geral do Estado, a Secretária da Saúde instalou a Comissão nesta sexta-feira, solicitando à Comissão a agilidade necessária ao deslinde do caso e a punição dos responsáveis em caso de comprovada irregularidade.
A Comissão já teve os trabalhos iniciados nesta sexta-feira (25), inclusive com oitiva de servidores e análise de documentos, e tem prazo de 30 dias para a conclusão dos trabalhos.
Ressalte-se que a SES, sempre que constata fato de irregularidade, seja por identificação própria ou por denúncia, adota as medidas cabíveis.
Reitera, ainda, que cumprimento da carga horária é dever do servidor público (Lei 10.098/94 – Estatuto do Servidor) e que o não cumprimento de carga horária é infração administrativa e sempre que identificado servidor, deve ser apurada e, se comprovada, punida.
Se comprovados os fatos, podem estes ser considerados crime e, como em todos os casos, terá encaminhamento ao Ministério Público.
A SES sempre se pauta pelo cumprimento de normas e toda e qualquer possível irregularidade será corrigida e, nos termos da lei, quando comprovada, punida.
Também conta com sistema de controle interno e, havendo necessidade, além de sindicâncias, podem ser realizadas ações internas e auditorias para qualificar e corrigir situações encontradas.
Assim, o encaminhamento foi e sempre será de corrigir erros, punir os responsáveis, quando identificados, com a total transparência que a SES sempre teve e se pauta.”
Veja a nota completa do Ministério da Saúde
“O Ministério da Saúde informa que a Política de Atenção às Urgências estabelece uma quantidade de médicos por Central de Regulação de Urgência (CRU) conforme a cobertura populacional de cada localidade. É previsto que as centrais encaminhem, a cada seis meses, documentação que comprove o funcionamento do serviço, incluindo o Relatório Descritivo Analítico (RDA) que consta a escala vigente da equipe médica. Contudo, a gerência e fiscalização das escalas dos profissionais cabe aos gestores locais.
O incentivo federal para custeio anual repassado ao programa SAMU do Estado do Rio Grande do Sul é de R$ 64,5 milhões. Os critérios para manutenção de repasse está previsto pela portaria n° 3/2017. Qualquer irregularidade ou descumprimento dos critérios exigidos em portaria podem acarretar na suspensão dos repasses.
O quantitativo mínimo de profissionais para compor a sala de regulação médica do programa deve ser de 12 Médicos Reguladores/dia e 10 Médicos Reguladores/noite, conforme portaria. A unidade citada é habilitada para estimativa de cobertura populacional de 7 a 8 milhões de pessoas.
Em relação ao caso citado, o Ministério da Saúde vai realizar visita técnica à Central Estadual de Regulação do SAMU para verificar as informações trazidas pela reportagem e o funcionamento do programa SAMU na região.”
Fonte: GZH