Quando a soldado Florimar Bastos, 46 anos, vestir a farda da Brigada Militar e retornar à sede do Grupo de Policiamento Ambiental de Santana do Livramento, na Fronteira Oeste, na próxima segunda-feira (18), ela estará dando mais um passo importante na vitória da maior batalha da sua vida. Pela primeira vez em 20 anos de corporação, o inimigo enfrentado não foi um criminoso ou foragido da Justiça, nem acabou neutralizado com técnicas que ela aprendeu a dominar.
A soldado está voltando à tropa curada do câncer de mama – um ano e quatro meses após o diagnóstico e 14 meses depois de se afastar da BM para tratamento. A policial ainda não consegue prever a sensação que terá ao reassumir o cargo após o período mais transformador da sua trajetória.
— Sinto uma ansiedade positiva, de como vou me enxergar a partir de agora. Para mim, é uma volta triunfal. De todas as experiências da minha vida, essa foi, além da mais de difícil, a mais dolorosa. Todo o resto que aconteceu, enfrentei e passou. Essa me marcou profundamente.
Natural de Santana do Livramento, Flor, como é conhecida, vem de uma família em que pai, irmãos e tios são integrantes da BM. Formada na Academia de Polícia Militar em 2002, foi direto para a linha frente e passou a integrar o Batalhão de Operações Especiais (BOE), em Porto Alegre, onde concretizou o sonho pavimentado desde a infância. Depois de um ano, voltou à Fronteira para o Pelotão de Operações Especiais (POE) em Livramento. Nesse período, conquistou outro objetivo: após treinamento rigoroso, passou a integrar a Força Nacional e trabalhou nos jogos Pan-Americanos em 2007, no Rio de Janeiro.
Depois de cinco anos no POE da Fronteira, recebeu convite para integrar o policiamento ambiental e atuou em denúncias, operações de fronteira quase diárias e fiscalização em pedreiras, rios e plantações. Nas estradas vicinais da Fronteira, deparou com contrabando de armas, drogas e abigeato.
A dedicação à profissão nunca a impediu de cuidar da saúde, mas foi em um autoexame em junho do ano passado, quando não havia completado nem um ano da última mamografia, que sentiu um caroço na mama direita. O diagnóstico posterior detectou câncer em fase inicial em nível três _ o que indica que é mais agressivo. Começou o tratamento no Hospital de Caridade, em Santa Maria, na Região Central, com o mastologista Flavio Jobim e o oncologista Rafael Coelho. Em meados de agosto, se afastou da BM, e em 1º de setembro do ano passado fez cirurgia de retirada da mama e colocação de prótese.
— Por mais esclarecidos que sejamos, o câncer é assustador e mata. Fiquei apavorada, sem chão, passou o filme da minha vida na cabeça. Como policial, a gente se enxerga como uma fortaleza, sempre acha que é um pouquinho mais forte do que os outros. Tenho essa característica de força, determinação, objetividade e resolução. Tive que me enxergar no espelho e enfrentar aquilo e dizer que iria conseguir. Foi difícil no começo e está sendo até agora.
Após a cirurgia, fez seis sessões de quimioterapia. Em outubro do ano passado, raspou a cabeça e assumiu a doença publicamente. A partir daí, veio a enxurrada de carinho. Recebeu no celular um vídeo que mostrava os sete colegas do quartel com a cabeça raspada e, também, uma onda de mensagens positivas nas redes sociais, de professoras do tempo do Ensino Fundamental a líderes religiosos:
— Isso me fortaleceu muito durante o tratamento. A quimio me deixou arrasada, sentia que eu estava desmanchando, ficava atirada na cama, mal, sem fome, sem condições de nada. Foi muito difícil olhar no rosto dos meus colegas e da minha família e ver que eles estavam me olhando com pena, com pesar — lembra.
“Não dá para descuidar nunca”
Flor buscou apoio psicológico e psiquiátrico para se reconstruir. No retorno à BM, assumirá atividades administrativas de forma definitiva. A soldado tem recomendações médicas para não ir mais para a linha de frente. Na rotina pessoal, já retornou ao pilates e às caminhadas.
— Precisei de ajuda dos universitários, porque eu, mulher, militar, com característica de combate, de repente tive de renascer em outra pessoa, com outro perfil e com limitações.
Mesmo longe das atividades desde agosto do ano passado, Flor não se afastou dos colegas. Era levada por eles a cada 15 dias para o tratamento em Santa Maria, recebia ligações diárias e oferta de apoio no que precisasse.
— Não me abandonaram em nenhum segundo, do soldado ao coronel. Costumo dizer que fui acolhida por anjos de farda e anjos de branco. Foram um alicerce para a minha recuperação. Assim como recebi uma corrente do bem estando doente, não quero mais deixar de dizer sempre que puder o carinho que tenho e o quanto quero bem todo mundo que gosto. Minha perspectiva mudou. Esse medo da morte por uma doença te transforma tanto que tu consegues perceber que nada é mais importante que eu mesma, as pessoa próximas e o carinho delas.
Durante o tratamento, também buscou forças na fé à Nossa Senhora Aparecida e contou com o carinho da sobrinha de quatro anos, que ficava grudada na policial quando ela retornava das quimioterapias, em Santa Maria. Flor terá de tomar medicação por cinco anos e já faz acompanhamento periódico no Hospital de Caridade. Nas próximas semanas, fará cirurgia para colocação de prótese na mama esquerda.
— Quero que fique harmônica. Preciso me enxergar no espelho, colocar uma roupa e não me sentir mutilada, ainda me sinto assim. Não é o outro perceber, mas a minha vaidade. É importante tu te enxergares mais reconstruído e menos pela metade — analisa.
Vencidas todas as etapas, Flor engrossa o discurso de prevenção e quer ajudar outras pessoas sempre que tiver oportunidade:
— Não dá para se descuidar nunca, em nenhum momento. Nosso corpo é a nossa casa. Sempre fui cuidadosa com a saúde, e ainda assim passei por toda essa dor.
FONTE: GZH