Do confronto nas ruas às demandas internas, a pressão vivida por policiais leva o comando da Brigada Militar a manter um departamento com médicos, terapeutas e grupos de apoio a profissionais que passaram por momentos de confronto — como abordagens que terminaram em morte do suspeito ou de um colega de trabalho. Um conjunto de serviços que bateu recorde na mais recente consolidação anual: foram 18,6 mil chamados em 2022, ante 15 mil atendimentos em 2021. Se comparado com cinco anos atrás, o salto é ainda maior, com o triplo de consultas realizadas.
Com base nesses números, GZH buscou informações e ouviu especialistas para saber o que aflige a tropa, e detalha a seguir como é o serviço de saúde mental da BM.
— Os números são de mudança de cultura e efetivo maior. Não só dentro da Brigada, mas dentro da sociedade notamos uma conscientização da necessidade do cuidado com a saúde mental — avalia a major Denise Alves Riambau Gomes, médica psiquiatra e chefe da Seção Biopsicossocial de Saúde da BM.
O efetivo focado na prevenção é dividido em psiquiatras oficiais e civis, além de psicólogos não-militares. São 37 especialistas para atender os 17,2 mil PMs. Apesar de representar um profissional para cada 464 policiais, é o maior contingente já registrado — um acréscimo de 15% desde a última contratação.
A forma de atendimento, no entanto, gera debates: soldados ouvidos pela reportagem dizem se sentir inibidos a dividir angústias e levar determinadas queixas aos psiquiatras militares, oficiais de patente mais elevada do que a categoria dos praças. Este grupo de médicos carrega as insígnias sobre o ombro, ao atender fardado, o que é encarado, por alguns, como uma afronta à isonomia.
— O praça fica constrangido em relatar o que acontece no batalhão a um oficial, pois ele pode estar sofrendo uma pressão do comandante, que também é um oficial. Lobo não come lobo — diz um policial que pediu para não ser identificado.
Cinco dos 11 psiquiatras da BM são militares, como a chefe do departamento. A major Denise pondera que é seguido um regramento, e há ainda possibilidade de troca de quem atende, para os que não sentem confiança no diálogo com o integrante de camada superior, passando o tratamento a um psiquiatra civil, de jaleco branco ou roupas próprias.
Outro ponto defendido pela militar é a ética profissional, com prontuários de acesso restrito às equipes médicas.
— Essa dificuldade de se abrir com um militar pode ser manifestada por um ou outro paciente, mas têm os que preferem o militar pois ele vai entender melhor o seu dia a dia, a hierarquia, regras… Tem os dois lados — afirma.
A perícia que define se o brigadiano deverá ser afastado, está apto a continuar ou retornar à atividade é exclusivamente feita por psiquiatras militares.
— Vai ser passado para a administração se a pessoa poderá seguir trabalhando no policiamento, mas não será passado a minúcia de que natureza psiquiatra é. Vai ser passado que é só uma licença médica — pondera a chefe, sobre o sigilo do que é relatado.
“O uniforme causa uma barreira”
O militarismo apontado neste cenário é descrito como “uma barreira” pelo soldado José Clemente, presidente da Associação Beneficente Antônio Mendes Filho, dos Servidores de Nível Médio da Brigada Militar e Bombeiros Militares do Rio Grande do Sul (Abamf/RS).
— Não é a melhor dinâmica, precisa mudar essa forma de atendimento. Nossa instituição é militarizada, e o soldado, sargento ou até mesmo tenente enxerga um oficial, não enxerga um médico. O uniforme causa uma barreira, o trauma continua — diz o soldado Clemente.
Em um comunicado publicado no site da associação, foram levantadas críticas ao sistema e, em especial, dito que é necessário investimento na ampliação do programa de saúde mental. Sob o título “A tropa está doente”, o texto expõe xingamentos e outras ocorrências que estariam ampliando o sofrimento.
— Vi veterano chorando por tais assédios. Tem militar que surta e leva isso pra casa, porque não sente liberdade de expor o que sente para o psiquiatra — complementa o dirigente sindical.
Ainda sem data para ocorrer, o próximo concurso da BM deverá aumentar o efetivo de militares: são esperadas quatro vagas para psiquiatras e três psicólogos também oficiais, uma novidade em relação ao atual sistema, com psicólogos exclusivamente civis.
Programa Anjos formou 430 facilitadores
O departamento atende online ou presencial, nos hospitais da Brigada, em Porto Alegre e Santa Maria, e em 11 cidades do Interior, por meio de uma das unidades de Comando Regional de Polícia Ostensiva (CRPO).
Além da psicoterapia, “facilitadores” são formados pelo programa “Anjos”. Criada em 2020, a iniciativa oferece cursos de saúde mental para leigos.
— São habilitados para terem um olhar mais sensível a seus colegas que estejam em sofrimento. Incentivar um colega a dar um pontapé inicial de buscar esse cuidado, que ainda é um certo tabu. Às vezes é uma conversa informal, dentro da viatura — exemplifica a chefe do setor biopsicossocial.
Ministrado em 50 municípios, o programa formou 430 “anjos” até março de 2023.
Soldado deixou a BM, e sargento perdeu viagem de férias
Joabson Leal Dorneles Silva, 38, pediu exclusão do quadro da BM em setembro de 2022, após sofrer uma suposta perseguição da superior. Ao deixar a corporação, incluiu no processo administrativo de baixa uma lista de motivos para a saída: violência psicológica, abuso de autoridade, ataques à dignidade, honra e uma inversão da culpa — de vítima a causador dos constrangimentos. Hoje, é advogado e atua em defesa dos antigos colegas.
— Pedi para sair para poder lutar por aqueles que ficaram e são calados, intimidados a tolerar os abusos, por acharem que não existe opção.
Silva afirma ter presenciado pessoas adoecendo devido a pedidos de transferência negados.
— Considero oficiais de saúde da instituição, não dos policiais. Eu, que fui militar e advogo para militar, sinto a dor dele e sei do risco de isso terminar em suicídio — conclui.
Um sargento ouvido, e que mantém o nome em sigilo, diz que teve a família abalada por ter tido negado um pedido de mudança na escala. Uma viagem junto da esposa estava programada, mas o acordo verbal deixou de ser cumprido, segundo contou à reportagem.
Há 20 anos no patrulhamento, ele reclama não ter diálogo na chefia do batalhão.
— Não levou em conta meu tempo de serviço. Era um direito que eu tinha. Reclamar pra quem? — questiona.
Ainda conforme o policial, há contestação das reclamações levadas ao comando, o que contribui para o clima instável, como define. O praça reconhece que existem opções para acolhimento, e que viu colegas em depressão ajudados pelas equipes. Para si, preferiu manter a resignação.
“Arriscam a vida para salvar a nossa”, diz psicóloga civil
Faz uma década que a psicóloga Michelle Moreira Saldanha, 41, atende os agentes de segurança, a partir de um serviço terceirizado da clínica onde trabalha. São 20 horas semanais, nas quais escuta as mais variadas histórias: morte, plantões cansativos e cobrança “para que sejam heróis”, como definiu a própria psicóloga sobre o sentimento imbuído à tropa pela sociedade.
— O trabalho deles não é nada fácil. Ninguém procura a Brigada para coisa boa. Eles arriscam a vida todos os dias para salvar a nossa — reitera.
O acolhimento pelos psicólogos, exclusivamente civis, é feito fora dos muros da coorporação, em uma casa do bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Nos batalhões, existe um complemento, em palestras e rodas de conversa.
— Não é à toa esse crescimento (nos atendimentos), a instituição se preocupa com a saúde mental. A gente não deixa ninguém sem atendimento, não podemos esperar até a semana seguinte para resolver uma situação. E se tivermos mais psicólogos, vai ter demanda — defende a psicóloga.
Outro ponto de atenção na corporação são os casos envolvendo suicídio, que já é a maior causa de mortes no efetivo em cinco anos: entre 2018 e 2023, foram 45 casos dentre os 89 óbitos de PMs. O dado foi obtido pela deputada estadual Luciana Genro (Psol), via Lei de Acesso à Informação, e levou à criação da Frente Parlamentar em Defesa dos Brigadianos de Nível Médio, instalada na Assembleia Legislativa na última sexta-feira (28).
“É uma categoria que precisa muito”, diz Sociedade de Psicologia
A presidente da Sociedade de Psicologia do RS (SPRGS), Luciana Maccari Lara, avalia de suma importância haver um departamento com foco na saúde mental de quem vive altos níveis de estresse, em especial na lida diária com uma população mais vulnerável.
— De fato, é uma categoria que precisa muito, e é bem importante que a Brigada Militar tenha essa estrutura — reconhece.
Luciana explica que entre paciente e psicólogo é criado um “contrato”, que assegura o foco no sofrimento que necessita de amparo. “Outras coisas”, como interesses do empregador ou de pessoas distintas a este círculo de confiança, precisam ser esquecidas.
A força dos símbolos institucionais, no entanto, pode virar uma questão que afete o tratamento, quando ele é realizado no mesmo ambiente de trabalho.
— De maneira geral, quando uma instituição tem um serviço de psicologia próprio, vira uma questão. Porque os profissionais que trabalham com o público interno são colegas. E cada instituição encontra formas diferentes de lidar com isso — avalia.
E conclui:
— A cultura militar tem hierarquia e obediência. É possível que, por ser da mesma instituição, também ajude a compreender e escutar. Mas também está sujeita a questões institucionais e a complexidades institucionais parecidas. Se por um lado pode compreender e se identificar e empatizar com aquele sofrimento, também pode ter dificuldade de escutar outras coisas, por estar sob a mesma complexidade institucional. Tudo isso precisa ser considerado.
Procure ajuda
Caso você esteja enfrentando alguma situação de sofrimento intenso ou pensando em cometer suicídio, pode buscar ajuda para superar este momento de dor. Lembre-se de que o desamparo e a desesperança são condições que podem ser modificadas e que outras pessoas já enfrentaram circunstâncias semelhantes. Se não estiver confortável em falar sobre o que sente com alguém de seu círculo próximo, o Centro de Valorização da Vida (CVV) presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato. O CVV (cvv.org.br) conta com mais de 4 mil voluntários e atende mais de 3 milhões de pessoas anualmente. O serviço funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados), pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil (confira os endereços neste link).Você também pode buscar atendimento na Unidade Básica de Saúde mais próxima de sua casa, pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), no telefone 192, ou em um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado. A lista com os endereços dos CAPS do Rio Grande do Sul está neste link.
Fonte: GZH.