Queria que não tivesse ocorrido o incêndio na boate Kiss. Principalmente pelos pais, mães e irmãos que tiveram suas crianças levadas antes da hora. Tenho certeza que o prefeito da época, os secretários, os bombeiros, os engenheiros, os arquitetos, os músicos, os profissionais da saúde, os militares, os juízes e promotores, os meus colegas policiais, os vereadores, os taxistas, os flanelinhas, os músicos, o governador e todas as pessoas sãs desse mundão queriam que não tivesse havido aquele evento infeliz.
Mais, acredito piamente que aquela infeliz atitude de acender aquele artefato pirotécnico não teria ocorrido se aquele rapaz sequer imaginasse o trágico resultado. O outro rapaz não teria nunca sequer comprado aquele artefato de fogo. Aquela banda não teria tocado naquela boate se imaginasse que aquilo era uma arapuca. Os proprietários da boate, mesma forma, nunca fariam aquelas reformas e nem manteriam a casa funcionando naquelas condições com aquela quantidade de pessoas, se minimamente pudesse crer que o incêndio pudesse ocorrer.
Nem aqueles taxis estacionados em frente, que estavam num ponto irregular, que não era devidamente fiscalizado estariam ali. Tenho certeza que não. Mas o infortúnio ocorreu. Os táxis amassados pela multidão tentando fugir do fogo são prova de que ocorreu.
Muitas vidas se perderam. Muitas pessoas sobreviveram com sequelas. Vivemos o evento kiss desde as primeiras horas e por muito tempo. Convivemos com o fato por muito tempo, com as pessoas envolvidas por muito tempo, temos objetos até hoje na delegacia, a pedido da Justiça. O evento kiss é parte das nossas vidas. Vimos e assimilamos muito da dor. Que dor, meu Deus. Mas mesmo assim não temos como sentir a dor dos pais, mães e irmãos. Essa dor deve ser insuportável.
Uma justa e distribuída responsabilização poderia aplacar essa dor. Mas ninguém é culpado. Ninguém se sente culpado. Uns jogam pros outros; os outros devolvem pros uns. E pro delegado incompetente. A culpa é da polícia, que fez um inquérito público e espetaculoso. E o delegado é um incompetente, tinha motivações políticas. Acho que queria derrubar o prefeito e concorrer à prefeitura.
Isso já foi dito várias vezes. Inclusive a incompetência foi bradada por quem foi condenado em duas instâncias. A prefeitura, se fiscalizou, fiscalizou mal. Se tivesse fiscalizado bem, a boate não estaria aberta naquela noite. E o incompetente é o delegado. Quando pedimos os documentos sobre o licenciamento da boate, faltou o principal. E uma denuncia anônima nos alertou que o principal documento havia sido escondido e sonegado.
A polícia e o Ministério Público foram atrás e encontraram nos escaninhos da prefeitura. Era um documento de um técnico de carreira da prefeitura municipal que apontava cerca de duas dezenas de irregularidades que não permitiriam que a boate funcionasse nem um dia sequer. Está no inquérito. Foi deliberadamente escondido por quem pretendia se eximir das suas responsabilidades. Mas o delegado é o incompetente. E canalha.
O inquérito é fantasioso, uma aberração jurídica. Houve perseguição política direcionada à prefeitura. Foram indiciadas quase duas dezenas de pessoas de diversas cores, mas o delegado incompetente fez o inquérito politicamente para derrubar a prefeitura. O prefeito, quando ouvido responde que nada sabe, está no inquérito, são quase duas dezenas de não sei. Mas o delegado é o incompetente.
Quando a câmara de vereadores instaurou uma CPI para investigar o fato, os amigos do rei tomaram a CPI. Virou CPI para blindagem da prefeitura. E vazou gravação de reunião entre os vereadores, onde um deles (ou delas) diz que escondiam documentos. Houve até ocupação na Câmara de Vereadores pela população revoltada. Meu Deus, que delegado incompetente.
Todas as pessoas ouvidas em juízo choram e dizem que não têm culpa. Até testemunhas. Nunca tinha visto testemunha precisar dizer que não tem culpa (!) E choram. E dizem que sofreram. Nunca vi tanta falta de empatia.
Quem sofreu foi um pai que veio lá o extremo oeste buscar suas duas únicas filhas que faleceram no incêndio. Quem sofre até hoje são os irmãos e familiares, que além da perda pessoal, esperam por justiça. Uma vergonha ver essa gente chorando.
E era tão simples o gestor bater no peito e ter tomado a frente. Ter instaurado um procedimento administrativo na prefeitura (era seu dever) e apurado responsabilidades. E se chegasse ao final entendendo que ninguém teve culpa até aceitaríamos (talvez).
Era tão simples adotar uma postura corajosa, de liderança. Era simples saber que tudo o que acontece na sua cidade é sua responsabilidade, sim. Principalmente um incêndio em uma boate que não deveria estar funcionando, mal fiscalizada, a duas quadras da prefeitura, que matou mais de 200 crianças.
Pois é, devo ser incompetente, irresponsável, canalha e covarde. Tenho culpa sim. E sou muito incompetente, tão incompetente que o gestor foi promovido a Secretário de Segurança, o bombeiro indiciado que alertou sobre a minha incompetência virou comandante regional e eu… eu era um general e há seis anos comando o almoxarifado. E até os amigos que eu tinha, quando eu era importante, me abandonaram e viraram melhores amigos do prefeito, tamanha minha incompetência. Só me resta admitir. Olho pra trás e vejo que a culpa é realmente minha.
(*) Marcelo Mendes Arigony, hoje titular da 2ª Delegacia de Polícia Civil em Santa Maria, era Delegado Regional de Polícia e um dos líderes do inquérito que resultou no processo que levou quatro indiciados ao banco dos réus no processo criminal.
Foto: Marcelo Mendes Arigony