A busca por dignidade, espaço e direitos é permanente, mas datas como este 19 de abril, dia dedicado a celebrar a trajetória dos povos indígenas, devem ser recebidas pela sociedade como uma oportunidade coletiva de reflexão sobre a valorização da cultura deste importante povo originário. Mais que isto, é permitir o avanço de um necessário movimento de recuperação de espaço e visibilidade.
Além de assegurar a preservação de costumes, os indígenas têm o desafio de derrubar estereótipos e mostrar que possuem valiosa diversidade cultural e linguística. Para Marcos Kaingang, indígena do povo kaingang e Secretário Nacional de Diretos Territoriais do Ministério dos Povos Indígenas, o passo mais importante é transformar o processo de retomada das terras pelos indígenas em uma política de Estado permanente.
“A ligação destes povos com estes territórios de origem é cultural, é espiritual e fundamental para o fortalecimento de suas identidades. Os indígenas não querem simplesmente terra. Esta visão precisa ser mudada, eles foram expulsos no passado, é uma questão de direito fundamental”, defende o especialista.
Os indígenas querem manter vivas as suas raízes, mas também conquistar espaço na sociedade brasileira. “A simples devolução da terra não basta. O governo deve cumprir seu papel e proporcionar as demandas essenciais, como serviços médicos, escola e assistência social. Este é um processo que foi interrompido em governos anteriores e que estão aos poucos sendo retornados”, diz Marcos.
A luta por políticas públicas pensadas com os próprios indígenas
Pela primeira vez, o Ministério dos Povos Indígenas é comandado comando por um representante de seu povo, a ministra Sonia Guajajara. Esta mudança de conceito permite ampliar a visão sobre as demandas e os coloca como protagonistas do próprio futuro, aponta Marcos.
Mesma posição tem o vice-cacique da Reserva Por Fi Ga, comunidade Kaingang localizada em São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre, José Vergueiro. Ele entende que a construção das políticas públicas para seu povo precisa avançar. Para ele, a falta de estrutura básica e acesso a direitos básicos como Educação e Saúde retardam o desenvolvimento social e força muitos indígenas a prejudicar o convívio entre seus pares, resultando em perda de identidade cultural. “Muitos partem em busca da oportunidade que não chega”, complementa.
Atualmente, 85 famílias, cerca de 300 pessoas, vivem na Por Fi Ga. A área de 2,5 hectares ocupada pelo grupo há 16 anos ainda carece de prédios capazes de abrigarem adequadamente os serviços essenciais. “O espaço de atendimento de saúde e a escola são improvisados no centro cultural construído por nós. Estamos lutando por uma escola há 14 anos sem que nada mude”, cobra o cacique Vergueiro, que também lamenta a falta de participação do seu povo nas decisões que os envolve: “Precisamos ser ouvidos. Até aqui não esperamos governo, lutamos sozinhos.”
Distante das origens
Mais da metade dos indígenas gaúchos vive fora de territórios demarcados, conforme o Censo 2022. Diante de mais este dado, Marcos Kaingang reforça a importância do processo de retomada dos territórios originários. “No Rio Grande do Sul temos muitos indígenas vivendo isolados, sob lonas em beira de estradas. Além de perderem terras onde viveram por centenas de anos, muitas vezes por conta de atividades econômicas, perdem suas referências e chance de desenvolvimento.
Em busca de oportunidades, na década de 1990, Susana Kaingang precisou deixar a terra indígena Carreteiro, hoje parte da localidade de Água Santa, para cursar Direito na Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul (Unijuí). Com 19 anos na época, além da distância de suas referências, precisou enfrentar o preconceito. Logo na primeira vez em sala de aula se deparou com uma frase intimidadora no quadro negro: “Agora, índio quer ser gente”. “Era uma época diferente da atual, com estereótipo e sem políticas afirmativas”, recorda.
A Carreteiro completa 113 anos em maio deste ano. Localizada a dois quilômetros da sede do município, a comunidade tem atualmente 197 habitantes de origem kaingang, distribuídos em 60 famílias que vivem da agricultura, da pesca e também da fabricação de tijolos. E assim como Susana, muitos dos indígenas deixaram a terra onde nasceram por necessidade. “Precisamos nos aproximar do conhecimento dos não-indígenas para que possamos conquistar espaço. E a medida em que nos desenvolvemos, precisamos retornar este aprendizado para nossa comunidade”, defende.
Após tornar-se advogada, Susana cursou dois mestrados: em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e em Educação pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Em 2023, quase três décadas depois, tornou-se a primeira indígena doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente trabalha na área jurídica e integra movimentos voltados a políticas afirmativas para os povos originários. “Nossa posição na universidade é de reverter papéis e mostrar que indígena também tem conhecimento, ciência, cultura e valores”, diz Susana, hoje doutora em Educação.
Os pais de Susana, servidores aposentados da Funai, priorizaram a educação das cinco filhas. O esforço da família permitiu a graduação de todas elas. Duas são advogadas, uma é jornalista, uma é artista e uma é médica e enfermeira. “Temos representantes do nosso povo em muitas das áreas. Pela primeira vez temos indígena na Academia Brasileira de Letras”, destaca, fazendo referência ao líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor Ailton Alves Lacerda Krenak, da etnia krenaque.
Sobre este protagonismo dos povos originários, Susana acredita que a presença de Sonia Guajajara também é fator de destaque e que ajuda a construção de políticas afirmativas assertivas. “Antes, assim como nossa história era contada por não indígenas, as políticas afirmativas eram pensadas de fora para dentro. Ter uma ministra nossa é muito positivo para as demandas do nosso povo, pois não queremos ser lembrados apenas no dia 19 de abril, quando pintam o rosto das crianças nas escolas. Não queremos apenas direito às terras que nos foram tiradas, queremos ser parte da sociedade e vistos como indígenas sim, mas brasileiros que também somos”, cobrou.
Caminhos opostos
A trilha acadêmica inspiradora de Susana mostra que é possível. Porém. vem do outro extremo a indicação de que a conquista de oportunidades está longe de deixar de ser um desafio extremo para este povo originário. Dados do Censo Escolar de 2022 mostram que apenas 1,1% das pessoas autodeclaradas indígenas no Brasil estão matriculadas no Ensino Superior, contudo, o IBGE relata crescimento deste indicador, embora lento. Entre 2011 e 2021, a quantidade de matrículas em cursos de graduação aumentou 374%.
De origem guarani, a indígena Amélia, 40 anos, não teve chance de estudar. Mãe de quatro filhos, vive da produção do artesanato. Quando não está produzindo, passa os dias tentando vender nas ruas de Porto Alegre. São cestos de palha, pelos quais pede entre R$ 30 e R$ 50, colares e brincos feitos com penas a preços variados, e macela – a R$ 7 o molho.
A rotina da indígena consiste em viajar diariamente de ônibus da Comunidade Cantagalo III – Aracuã, no extremo Sul da Capital, até o Centro Histórico. Com o filho mais novo, de 1 ano e 8 meses, ela escolhe uma calçada para exibir seus artigos feitos à mão. Em um pedaço de papelão postado à frente dos objetos, tenta ajuda para sustentar a família, pois nem sempre encontra interessados em sua arte. “Ajude com um troquinho para comprar lanche, almoço e biscoito”, clama a mensagem em uma das faces do cartaz. Na outra, a súplica é por fraldas para o menino.
Amélia desconhece a origem germânica do nome recebido dos pais. Tampouco que deriva do termo “amal”, que significa “trabalho” ou “esforço”. Para ela, ser Amélia é simplesmente ser brasileira, no sentido de pertencer a um lugar, a um povo. Daí o pedido dela neste 19 de abril: “que lembrem da gente”. Desacostumada a dialogar com os andarilhos que cruzam seu caminho, foi a única frase completa dita por ela, em mais de meia hora de conversa, que conseguiu vencer a timidez.
Novos indicadores detectam crescimento da população
O Rio Grande do Sul abriga atualmente 36.102 indígenas, conforme Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizado em 2022. Este número evidencia um aumento expressivo em relação aos dados do levantamento anterior, de 2010, quando a população autodeclarada era de 24.994 pessoas e é explicado por diferentes fatores, sendo o principal a mudança de metodologia da pesquisa.
Em todo o Brasil, além da cor da pele para definir a origem étnica, perguntas relacionadas à herança cultural foram adotadas pelo IBGE. Tal alteração permite captar a autoestima deste povo, que após enfrentar a pandemia e o enfraquecimento de políticas afirmativas em passado recente, tenta recuperar a sensação de pertencimento a uma nação.
De acordo com o Censo 2022, a população indígena do país chegou a 1.693.535 pessoas numa grande diversidade de etnias e culturas. São mais de 305 povos e 274 línguas originárias. E conforme dados do IBGE e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), 51,2% desta população está concentrada na Amazônia Legal. O Amazonas reúne a maior população indígena: 490.935, seguido pela Bahia, com 229.443.
O Rio Grande do Sul é o 12° Estado em número de indígenas, com 36.102 pessoas autodeclaradas, representando 0,33% da população. Destes, 15.724 estão em terras demarcadas e reservas (43,55%) e 20.378 fora dos territórios de origem (56,54%). Esta população originária habita sobretudo as regiões norte e noroeste, e a maior reserva está localizada em Redentora, onde vivem 4.192 indígenas.
Porto Alegre tem 15 comunidades das etnias mbyá-guarani, kaingang e charrua. São 10 kaingang, quatro mbyá-guarani e uma charrua. Ao todo, a Capital reúne 2.957 indígenas vivendo dentro e fora de reservas.
Cidades gaúchas com maior população indígena no RS:
- Redentora: 4.192
- Porto Alegre: 2.957
- Tenente Portela: 2.194
- Nonoai: 1.652
- Planalto: 1.329
- São Valério do Sul: 1.237
- Charrua: 1.109
Fonte: Correio do povo / Censo 2022 – IBGE