Um réu foragido há anos da Justiça, com mandado de prisão em aberto, procurado pela polícia, fugindo e se escondendo constantemente para não ser preso porque é acusado de um crime grave, pode participar do próprio julgamento, ser condenado e continuar solto? Sim.
A resposta pode parecer surpreendente para alguns. Mas isso já ocorre desde maio de 2022, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a permitir que réus foragidos tenham direito de acompanhar e até participar das audiências de seus casos por videoconferência (saiba mais abaixo).
E foi o que aconteceu no mês passado em Santo André, no ABC Paulista, Grande São Paulo. Um empresário foragido da Justiça, procurado há mais de quatro anos pela polícia paulista e Interpol, acusado de matar a tiros um morador de rua, surpreendeu os jurados ao aparecer ao vivo num telão durante o julgamento do caso (veja acima).
O crime foi cometido em 11 de maio de 2019 na Rua Visconde de Mauá, em Santo André. E repercutiu à época justamente porque havia sido gravado por câmeras de segurança (assista também no vídeo acima). O julgamento popular do caso ocorreu no fórum da mesma cidade, no dia 31 de outubro de 2023.
Sua defesa pediu, o Ministério Público (MP) concordou e a Justiça autorizou Marcelo Pereira de Aguiar a participar por videoconferência do próprio júri pelo assassinato de Sebastião Lopes dos Santos, 40 anos. O g1 teve acesso ao interrogatório do réu, parte do julgamento (veja vídeo acima).
O motivo do crime nunca foi comprovado pela Polícia Civil, que investigou o caso, e pela Promotoria, que acusou o empresário. Algumas hipóteses foram investigadas, mas nunca confirmadas. Entre elas, está a hipótese de que o morador de rua costumava dormir em frente a pizzaria do empresário e pedir dinheiro aos clientes.
O empresário, que era CAC (sigla usada para quem é Colecionador, Atirador e Caçador legalizado), não queria que Sebastião ficasse perto do estabelecimento ou pedisse esmolas aos frequentadores. Outra possibilidade que chegou a ser investigada é a de que o morador de rua poderia ter presenciado alguma situação ilícita praticada na região e ter sido morto por esse motivo.
Marcelo, que tem um mandado de prisão preventiva decretado pela Justiça ainda em aberto contra ele, foi interrogado, mas não respondeu onde estava escondido atualmente. Contou, no entanto, que após o crime viajou para Santa Catarina e Argentina.
O empresário também negou ter assassinado Sebastião, dizendo que sequer conhecia a vítima, e nunca a viu antes. Mesmo alegando inocência, ele falou que não iria se entregar pois teme ser morto na prisão.
A maioria dos jurados não acreditou na versão da defesa de Marcelo e o considerou culpado. A juíza Milena Dias deu a sentença e o condenou a pena de 12 anos de prisão em regime fechado pelo crime de homicídio doloso, com intenção de matar, qualificado por recurso que dificultou a defesa da vítima.
E como o réu não se apresentou, continua sendo um fugitivo da Justiça. Por esse motivo, a magistrada decretou um novo pedido de prisão contra Marcelo, agora exigindo a prisão dele por ter sido condenado. Ela ainda pediu para atualizar a situação do empresário na Interpol (espécie de polícia internacional).
Para isso, a Justiça encaminhou cópia da sentença para a Polícia Federal (PF) alertar as autoridades de outros países sobre Marcelo. Ele está incluído na Difusão Vermelha da Interpol, alerta usado para autoridades sobre criminosos perigosos procurados.
O assassinato do morador de rua chamou a atenção da imprensa à época por ter sido gravado por câmeras de segurança (veja vídeo acima). Elas mostram um homem com boné saindo do lado do carona de um carro e caminhando em direção à vítima. Depois atira cinco vezes nela, corre para o veículo e foge.
A Polícia Civil analisou as imagens, checou denúncias anônimas e concluiu que o assassino é Marcelo. E que o automóvel, da marca Mercedes Benz, usado no crime também era do empresário. A investigação, no entanto, nunca conseguiu identificar quem era a pessoa que dirigia o carro.
Réus foragidos e videoconferência
Desde maio de 2022, o STF passou a permitir a réus foragidos o direito de acompanhar e participar das audiências de seus casos por videoconferência.
No entendimento de Edson Fachin, então ministro do STF, como a lei não obriga réus a comparecerem aos seus próprios interrogatórios na Justiça, o mesmo entendimento tem de ser aplicado ao contrário: quando acusados por crimes, inclusive foragidos, queiram prestar depoimentos em audiências.
Para isso, eles recebem por intermédio de seus advogados um link e ingressam nas sessões feitas pelo Microsoft Teams. Basta terem um aparelho de celular ou computador com câmeras ligadas. Depois se conectam e as conversas passam a ser gravadas.
Fontes da reportagem informaram que o sistema é rastreável. Mas pela regra do judiciário esse acompanhamento para saber a localização não pode ser feito em tempo real. E mesmo que alguma parte queira pedir à Justiça que os seus técnicos indiquem de onde o réu foragido acessou o link, ele já teria fugido para outro local, segundo especialistas ouvidos. E caso a polícia fosse lá, não o encontraria mais.
O g1 procurou o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) para saber quantos julgamentos de réus foragidos já foram feitos por videoconferência no estado desde então, mas o órgão não respondeu até a última atualização desta reportagem. De acordo com o Ministério Público, é o primeiro julgamento no júri de Santo André por videoconferência com réu foragido participando. Marcelo já havia sido interrogado antes, em 2022, também por vídeo, durante a audiência de instrução, nome dado a audiência que precede o julgamento.
“A questão é inédita, interessante e polêmica e põe em evidência o direito de autodefesa, os limites do benefício que pode haver ao acusado em participar do julgamento e o mandado de prisão não ser cumprido. Será que os jurados não veem como um escárnio contra as instituições públicas?, disse a promotora Manuela Schreiber Silva e Sousa.
Réu foragido é interrogado por vídeoconferência
Marcelo foi interrogado por quase uma hora e 40 minutos. Ele apareceu nas imagens de barba aparada, cabelo cortado e usando camisa social e fones de ouvido.
Nesse período o empresário foi perguntado pela Justiça qual era “seu endereço atual” e respondeu que ele era “desconhecido”.
Foi informado ainda pela juíza Milena de que não era obrigado a responder a nenhuma das perguntas, mas disse que responderia “a todas”. Além de negar ter cometido matado Sebastião a tiros, falou que “nunca vi esse senhor na minha vida”.
E respondeu aos seus advogados, Kleber Ben e Marcos José Campos Cattani, que ele não é o homem que aparece nos vídeos das câmeras de segurança atirando no morador de rua. “Não faz o menor sentido”, disse Marcelo.
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