Grupo de Investigação da RBS (GDI) flagrou a ação de criminosos transportando sacas do grão plantado no país vizinho para serem vendidas pelo dobro do preço no Brasil
Todas as manhãs, na margem Argentina do Rio Uruguai, centenas de trabalhadores braçais se enfileiram junto a caminhões e ajudam a descarregar grãos em barcaças. Estão prestes a ingressar clandestinamente no Rio Grande do Sul. Por rádio, vigias avisam sobre a presença de policiais ou qualquer veículo estranho na outra margem, no Brasil. Caso tudo esteja tranquilo, os barcos cruzam vagarosamente a água, amarrados a canoas a motor. Driblam pedras e corredeiras até o lado brasileiro, introduzindo em território gaúcho sacas de soja contrabandeadas . São apenas 300 metros de distância de um país a outro, mas resultam em sonegação e em risco sanitário, por ser produto não fiscalizado pelos brasileiros.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) documentou a prática ilegal. A cena dos estivadores descalços descendo barrancas e descarregando os grãos nas balsas permite que os responsáveis pela mercadoria consigam vendê-la, no Rio Grande do Sul, por um preço de duas a três vezes maior. O dinheiro obtido varia conforme a conjuntura, mas sempre é muito mais lucrativo do que comercializar o grão na própria Argentina.
Ao introduzir de forma ilegal o produto pela fronteira brasileira, o produtor escapa do pagamento de impostos de exportação que são cobrados na Argentina. O dono de uma carreta hermana precisa desembolsar 1 milhão de pesos em imposto — o equivalente a R$ 8.695 — em Misiones para chegar à fronteira com carga de soja.
Caso o argentino opte pelo crime de contrabando, consegue R$ 60 por saca de soja. Caso o produtor argentino resolva pagar impostos em seu país e exportar legalmente, restará a ele R$ 32,45 por saca do grão. Soma-se a isso o fato de o valor pago no Brasil pela saca de soja ser, dependendo da época, maior do que o obtido pelos produtores no território argentino.
O produtor de grãos foge do controle fiscal e os estivadores garantem emprego, algo escasso na Argentina. Cada um deles ganha entre 3,5 mil pesos (R$ 30) e 5 mil pesos (R$ 43) para ajudar a descarregar uma carreta de 42 toneladas. Trabalhando em grupos que se revezam na retirada dos sacos, fazem isso em cerca de quatro horas. Depois ajudam a levar para o Brasil.
É um serviço com jeito de trabalho escravo. Esses estivadores atuam sem carteira assinada e sem garantia de assistência caso sejam presos. Mas, mesmo assim, acreditam que compensa. Ganham menos de R$ 30 se forem trabalhar nas lavouras de chá, erva-mate ou citronela, produtos dessa parte da Argentina— analisa o delegado da Polícia Civil Marion Volino, que atua em Três Passos, no noroeste do RS, e um dos responsáveis por investigações sobre crimes nessa região de fronteira.
Do lado brasileiro, os receptadores também lucram com o crime. Podem comprar o grão contrabandeado a um preço um pouco menor do que o praticado no Brasil, a R$ 60, e revender a cerealistas por R$ 140. Para disfarçar a origem da operação, usam talões de notas “calçadas” (frias). O resultado é que a Receita Federal tem encontrado pequenas propriedades, até 15 hectares, que declaram notas de produção de soja fantásticas, incompatíveis com o seu tamanho.
Em alguns casos, para justificar o que declaram nas notas, teriam de produzir 250 sacas por hectare, algo impossível em qualquer parte do mundo (a média no Rio Grande do Sul foi de 32 sacas por hectare neste ano) — resume Pedro Bellinaso, auditor da Receita Federal que chefia a repressão ao contrabando e descaminho ao longo de toda a fronteira noroeste do Rio Grande do Sul.
Atracadouros na lama, escorregadores para o grão
O contrabando de soja fez proliferar a montagem de rotas clandestinas de escoamento de grãos. Toda uma infraestrutura foi montada dos dois lados do Rio Uruguai para garantir a empreitada. Começa na pavimentação de estradas municipais (com substituição de atoleiros por brita), na construção de galpões para armazenamento provisório de sacas de soja e de equipamentos (moegas ou tulhas), e em espécie de depósito provisório de metal com escorregador em forma de funil, para facilitar a colocação dos grãos nos caminhões e balsas.
A Brigada Militar e as polícias Civil e Federal mapearam mais de 50 portos clandestinos improvisados pelos contrabandistas ao longo de três municípios gaúchos: Tiradentes do Sul, Esperança do Sul e Crissiumal, todos na fronteira noroeste. Mas esses atracadouros improvisados na lama podem ser muito mais que 50. O GDIesteve em 10 portos concentrados num pequeno trecho de dois quilômetros nas proximidades de Porto Soberbo, distrito de Tiradentes do Sul.
Algumas propriedades chegam a ter duas saídas clandestinas para o rio. Dali é possível assistir ao movimento incessante de caminhões carregados de soja e milho, subindo e descendo as barrancas nos dois lados do Rio Uruguai.
Em alguns pontos o atoleiro foi coberto com grossa camada de brita. O descaso dos contrabandistas em relação à ilegalidade é tanto que as sacas de grãos chegam ao porto clandestino gaúcho rotuladas em espanhol e estampadas com a frase Indústria Argentina. São retiradas por carregadores argentinos — que atuam irregularmente no lado brasileiro da fronteira —, direto das balsas para os caminhões. Ou então para carretas puxadas por tratores, quando o barro é muito. Não há preocupação em disfarçar. Os veículos são velhos, para que a perda financeira não seja muito grande, caso sejam apreendidos pela fiscalização.
Essa fronteira é um queijo suíço, mas fazemos o possível para coibir o contrabando, com os recursos disponíveis para coibir o crime fronteiriço — admite o tenente-coronel Ailton Azevedo, comandante do 7º BPM, de Três Passos.
Os policiais admitem que os contrabandistas contam com uma rede informal de apoio nos municípios costeiros ao Rio Uruguai.
É um fenômeno cultural. Muitos fronteiriços nem encaram contrabando como delito, se comparado ao tráfico de drogas, carros e armas. Só que os mesmos portos são usados para traficar — pondera o delegado regional da PF em Santo Ângelo, Farnei Franco Siqueira, que investiga crimes nessa parte da fronteira.
Inquéritos na PF revelam que muitas vezes os mesmos barcos usados para transportar soja carregam junto agrotóxicos proibidos no Brasil.
O crescimento do contrabando pode ser constatado a partir do aumento nas apreensões feitas pelas autoridades. A Receita Federal contabiliza 444 toneladas de soja e milho contrabandeadas apreendidas no primeiro semestre de 2023, em 82 quilômetros de fronteira que separam as três cidades costeiras do noroeste do RS da Argentina. O equivalente a 10 carretas carregadas de grãos.
Muitas dessas apreensões foram feitas pela Brigada Militar e Polícia Civil, junto à Receita Federal, no âmbito da Operação Agro-Hórus (que mira todo tipo de contrabando). Foram apreendidas também barcaças de diversos tamanhos.
A PF de Santo Ângelo, que atua na fronteira noroeste, contabiliza 45 ações nos últimos dois anos, com 89 indiciados (na maioria, presos). Dois flagrantes, em 2022, foram gigantes: um com 27 presos e outro, 16 presos.
Fonte: GZH