Pouco mais de um mês depois da primeira reportagem sobre a farra das escalas na central estadual do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), o Grupo de Investigação (GDI) da RBS retorna ao tema. Agora, mostra outra ponta da situação: a demora no transporte de pacientes graves entre postos de saúde e hospitais, tarefa que também cabe aos plantonistas que atendem na central que fica em Porto Alegre e responde para 269 cidades gaúchas.
Médicos de pessoas infartadas revelam ao GDI esperas de até uma hora pelo atendimento que deveria ser de urgência. Uma das pacientes, mãe da própria médica que pediu a remoção, acabou morrendo.
O caso citado acima ocorreu no dia 27 de maio de maio. Uma médica, que prefere não se identificar, estava atendendo a mãe. A mulher havia sofrido um infarto e foi levada ao hospital de Tuparendi. A paciente precisava ser transferida para Ijuí com urgência. A filha dela, que é médica, entrou em contato com a central de regulação e pediu uma ambulância especializada neste tipo de remoção.
— A gente faz a ligação para o 192 e cai lá para a central de regulação, onde passamos as informações do quadro do paciente. E eles nos encaminham uma ambulância que está mais próxima — explica a filha da paciente.
Neste caso, o veículo mais próximo estava em Santa Rosa, a menos de 15 quilômetros. A filha conta que foram mais de 45 minutos de espera até falar com um médico regulador:
— Com certeza foram mais de 45 minutos até que eu consegui falar e que fosse regulado o leito. Aí então eles ligaram para a central encaminhar a ambulância de Santa Rosa para o município que eu estava e levar minha mãe para Ijuí. É uma coisa bem rotineira ligarmos e ficarmos muito tempo na ligação, não foi só nesse caso em específico que aconteceu.
A mãe da médica precisava realizar um cateterismo — um exame dentro da artéria obstruída — para que então fosse decidido o tratamento. A filha explica que cada minuto nestas situações é importante:
— Quanto mais tempo demorar, mais função miocárdica tu perdes, menor a chance de recuperar o paciente.
O médico e professor de cardiologia da Feevale Eduardo Costa Barbosa corrobora a explicação:
— No infarto agudo do miocárdio, quanto mais rápido você abrir a coronária, mais músculo, mais miocárdio você consegue salvar. Então, o tamanho do infarto tem uma relação direta com esse tempo para você conseguir abrir a coronária.
A mãe da médica morreu ao chegar no hospital em Ijuí. Naquela dia e horário, na central em Porto Alegre, seis plantonistas deveriam estar atendendo. Mas conforme os relatórios obtidos pelo GDI, apenas uma médica atendeu entre às 4h e às 7h — ou seja, além de ser a única reguladora, ela ainda cumpriu apenas um terço da jornada obrigatória de 12 horas.
Além de receber pedidos de ajuda da população e orientar as equipes de socorristas, os plantonistas também atuam para garantir transporte aos pacientes graves que precisam de remoção entre hospitais e postos de saúde. É o chamado sistema de vaga zero, segundo conta o ex-enfermeiro do Samu Cleiton Félix, que revelou o problema ao GDI.
— O médico do Interior, ele depende do hospital de grande porte da Capital para dar continuidade ao tratamento do paciente. Então, quem detém o poder de regular esse paciente para dentro de Porto Alegre é essa central — explica Cleiton.
Espera por transferência
No Vale do Sinos, mais um exemplo. Neste caso, o paciente também era cardíaco, tinha sofrido um infarto e precisava de um cateterismo com urgência para examinar uma artéria obstruída. O médico de uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) tentava a transferência para um hospital especializado. Eram 15h30min do dia 14 de agosto deste ano. Na época, o profissional registrou em vídeo o problema.
— Sobre aquele paciente do infarto, agora eu estou exatamente uma hora e dois minutos praticamente aguardando. Esta é a segunda vez que estamos ligando. O Samu não me atende — diz ele, que prefere não se identificar, na gravação.
O paciente foi removido para a Santa Casa, em Porto Alegre, uma hora e meia depois. Ele recebeu alta posteriormente. Mesmo tendo sobrevivido, o idoso de 83 anos poderia ficar com sequelas, como explica o médico:
— Tempo é a vida do paciente nestes casos. E a gente perdeu uma hora, como os vídeos mostram aí, tão somente para falar com o colega da regulação. Certamente, se tu demoras a fazer um cateterismo de emergência, o paciente vai evoluir mal, vai evoluir com alguma disfunção, com algum grau de insuficiência cardíaca.
Naquele turno de 14 de agosto, seis médicos estavam escalados na regulação do Samu entre 7h e 19h. Mas metade deles simplesmente não trabalhou no turno da tarde, como revelam os relatórios de atendimento aos quais o GDI teve acesso. É o primeiro caso que expõe problemas nos plantões também durante o turno do dia, não somente durante a madrugada, como o GDI vinha mostrando. Com menos médicos reguladores presentes, há mais demora para atender aos chamados.
— Às vezes tem DE transferir esse doente para um centro de referência, por exemplo, de AVC e infarto. Esses são os casos principais que nos causam preocupação. Geralmente, para esses dois casos que estou falando, nós temos quatro horas para agir ou o paciente tem risco iminente de morte — lamenta o profissional do Vale do Sinos.
Avanços após um mês
Um mês depois, a farra dos médicos reguladores do Samu segue sendo apurada em sindicância aberta pelo governo estadual. Inicialmente, o prazo da sindicância ser concluída era de 30 dias, o que deve estender a investigação até o fim de outubro. O autor das denúncias ao GDI, Cleiton Félix, já foi ouvido.
O Ministério Público também investiga o caso em conjunto com a Polícia Civil. Em setembro, a Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS) trocou toda a direção do Departamento Estadual de Regulação, depois do afastamento do então diretor, Eduardo Elsade, e da diretora-adjunta, Laura Sarti de Oliveira.
Elsade era servidor do município de Porto Alegre e estava cedido para a SES-RS. Com o afastamento, ele retornou para a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) da Capital e ganhou praticamente o mesmo cargo que tinha no Estado, que é de gestão e coordenação das urgências.
Contraponto
O GDI procurou a Secretaria da Saúde sobre as denúncias. Em nota, a assessoria alegou que não é possível fazer qualquer tipo de posionamento, porque a reportagem teria se recusado a informar os casos e horários em que teria havido a suposta demora.
A reportagem informou a pasta as mesmas datas e horários citados na reportagem, mas não revelou os nomes para não expor pacientes e médicos.
Fonte: GZH