Fila do SUS tem 670 mil pedidos de consulta no RS; 2,4 mil pessoas morreram à espera de atendimento em dois anos

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Família de Jhenyfer Gabriela do Amaral, que estava na fila por uma cirurgia na vesícula, sofre a perda da jovem de 22 anos, que morreu em Sapiranga na véspera do Natal. Giovani Grizotti / Agencia RBS

O Rio Grande do Sul tem uma fila de 670 mil pedidos de consultas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Uma única pessoa pode solicitar mais de uma consulta, com diferentes especialistas, o que dificulta precisar o número de indivíduos nas fila. 

São 196.936 pedidos na espera só em Porto Alegre, onde os dados são públicos e disponibilizados no site da prefeitura. Obtidos pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI) via Lei de Acesso à Informação, os números informados pelo governo gaúcho apontam que existiam, até 18 de dezembro do ano passado, 473.785 solicitações de atendimento. Ainda conforme esses dados, no Estado, 2.434 pessoas morreram ao longo dos anos de 2023 e 2024 enquanto aguardavam para serem chamadas. 

Embora o SUS seja federal, a regulação das filas é feita pelos governos dos Estados, e em algumas cidades a gestão da Saúde é do próprio município, como no caso da Capital. Por isso, existe mais de uma fila. 

As especialidades com maior demanda são oftalmologia, ortopedia, otorrinolaringologia, reabilitação e cirurgia geral. O governo gaúcho não informou o número de pacientes na fila por especialidade nem aqueles com mais tempo de espera, conforme solicitado, o que fez a reportagem ingressar com recurso. 

Entre os que não resistiram, está uma jovem de 22 anos, de Sapiranga, que morreu na véspera de Natal. Jhenyfer Gabriela do Amaral estava na fila por uma cirurgia na vesícula desde setembro do ano passado. Ela também sofria de depressão e epilepsia. Ao sentir fortes dores no abdômen, foi levada pelos pais à Unidade Básica de Saúde do município, onde foi medicada e liberada. Morreu duas horas depois de chegar em casa.

— O rico tem como pagar um plano de saúde, uma cirurgia. O pobre não tem. Espera pelo SUS. Se tivesse condições, eu não tinha levado minha filha aquela noite para a upa, né? — lamenta o pai, Jandir Gomes Amaral, auxiliar de frigorífico. 

prefeitura da cidade abriu sindicância para apurar o atendimento na UPA. Em nota, ressaltou que “em  2024 o percentual do orçamento municipal destinado para a área chegou a 29%, sendo que a lei prevê 15% do orçamento” para o setor (leia a íntegra abaixo).  

“A gente tá morrendo”, diz paciente que aguarda cirurgia desde 2016

Em Esteio, o GDI localizou uma pequena empresária que teme entrar para essa estatística mórbida enquanto aguarda atendimento. Kelly Priscila Maciel Oliveira aguarda há oito anos por uma consulta para iniciar um tratamento bariátrico. 

A gente tá morrendo. Se eu não tiver tratamento, eu vou morrer. E eu acho isso um pecado, porque eu tenho um filho de 13 anos, tenho uma filha de cinco anos, que precisam de mim.

KELLY PRISCILA MACIEL OLIVEIRA

Paciente de Esteio que aguarda há oito anos por consulta para iniciar tratamento para obesidade mórbida

secretária adjunta da Saúde, Ana Costa, pondera que, na lista de mortos, não é possível identificar se os óbitos tem relação com o atendimento que essas pessoas buscavam, mas que o Estado “se preocupa” com cada um.

— Teria que ver cada um dos casos, porque, às vezes, a pessoa aguarda um atendimento, mas o óbito não tem essa correlação direta. Infelizmente, a gente tem perdas, como tem em todas as áreas, e o Estado sempre se preocupa com cada uma delas — afirma Ana.

Em Porto Alegre, além das 196.936 pessoas que aguardam por consulta,  outras 152.883 esperam por exames.

— Nós temos como prioridade zero reduzir o tempo de espera na fila de especialidades. Para isso, vamos criar um programa permanente de oferta de consultas especializadas, maior do que a gente tem hoje — promete o secretário municipal da Saúde, Fernando Ritter

A longa espera por atendimento, além de causar sofrimento aos pacientes, onera o poder público. Isso porque, quando finalmente essas pessoas são assistidas, podem ter tido seus quadros de saúde agravados, terem de ficar mais tempo internadas e ainda adquirirem outras doenças. 

É o caso da merendeira Ivone Fraga da Silva, de Porto Alegre, que no próximo dia 21 vai completar três anos de espera. Além de necessitar de cirurgia bariátrica, ela agora vai ter de tratar joelhos e coluna, sobrecarregados pela obesidade mórbida.

— Sinto muitas dores, na coluna, no meu joelho. Estou com artrose nos dois joelhos, esperando prótese, e minha vida só piora. Não consigo trabalhar — declara Ivone.

O presidente do Conselho Regional de Medicina, Eduardo Trindade, confirma esse efeito cascata:

— Se não tratada (a doença original), o paciente pode vir a ter um AVC (acidente vascular cerebral), um infarto agudo miocárdio, problemas ortopédicos mais variados, como problema de quadril e de joelho.

Após 800 dias de espera, cuidadora terá de entrar para a fila outra vez

Em dezembro passado, a cuidadora de idosos Soeli Soares Lopes, que mora em Eldorado do Sul, foi atendida após mais de 800 dias esperando por uma consulta com ortopedista. O objetivo seria tratar uma inflamação no quadril. Enquanto era atendida pelo especialista, descobriu outro problema, agora na coluna, e terá que entrar na fila novamente.

— O desespero é muito grande. Não tem onde mais recorrer. Isso me tirou o chão — lamenta.

Secretaria Estadual da Saúde diz que tem adotado medidas para reduzir as filas, como a abertura de novas frentes de atendimento em cidades como Santa Maria, na Região Central, e Viamão, na Região Metropolitana.

— O que a gente procura é fortalecer a nossa rede de assistência para cada vez mais dar acesso. Uma outra coisa que está se fazendo é a qualificação das filas. Com um convênio recentemente assinado com o Telesaúde, a gente vai conseguir olhar para essas filas profundamente e tentar garantir a qualidade da informação que o profissional coloca dentro do sistema, para garantir que a informação permita ao regulador colocar o paciente certo no lugar certo — assegura Ana Costa, secretária-adjunta da pasta.

Por sua vez, o Ministério da Saúde diz, em nota, que trabalha continuamente para “para a redução de filas em cirurgias e procedimentos realizados pelo SUS” (leia a íntegra abaixo)

Procurado, o Ministério Público afirmou, em nota, que atua em 31 inquéritos relacionados às filas de espera na Saúde em Porto Alegre e também no interior do Estado. Já a Defensoria Pública do Estado, que tem obtido diversas liminares para garantir atendimento a pacientes, afirma que vai pedir explicações ao governo

— Esses dados trazidos são bem alarmantes. Vão ser requisitadas informações ao Estado sobre quais providências estão sendo tomadas, se é possível a contratação de novos profissionais de forma urgente para que essa fila do SUS seja diminuída e essas pessoas tenham o acesso que é previsto na Constituição e nas leis. Caso não seja possível, é cabível a ação civil pública, a propositura de uma ação, para obrigar também o Estado a tomar providências, daí de forma judicial — diz defensora pública Roberta Barbosa.

Leia a íntegra da nota da Secretaria Municipal de Saúde de Sapiranga

“Em Sapiranga, a Secretaria Municipal de Saúde investe em diversos serviços de suporte para os atendimentos que, por regra, são de responsabilidade estadual. Em 2024 o percentual do orçamento municipal destinado para a área chegou a 29%, sendo que a lei prevê 15% do orçamento para a Saúde. A Unidade de Saúde Especializada (USE) atua na avaliação dos casos que demandam especialidade ainda dentro do município. Esse serviço evita o aumento dos encaminhamentos para Gercon e também auxilia em um diagnóstico mais claro em casos de gravidade. Outra medida importante para mitigar a fila de encaminhamentos para o sistema estadual é o convênio extra da Prefeitura com o Hospital Sapiranga que realizou mais de 300 cirurgias eletivas ainda no primeiro semestre de 2024, suavizando uma demanda que foi gerada pela pandemia. O convênio renovado a cada ano com o Hospital Sapiranga atende mensalmente 80 pacientes para cirurgias, além dos mutirões realizados. Esses serviços custeados pelo município são fundamentais para que os cidadãos consigam ter o atendimento efetivo antes do agravamento das enfermidades. Todas as medidas buscam evitar que o paciente precise entrar na fila da Secretaria Estadual de Saúde. 

Em 02/01/2025 são 30 pacientes aguardando consulta para cirurgia geral via sistema Gercon, 3 destes já foram avaliados nas nossas referências pactuadas e encaminhados para atendimento em outro serviço, devido à falta de capacidade técnica do mesmo no atendimento. Situação que ocorreu com a paciente Jhenyfer Gabriela Vanzan de Amaral que foi encaminhada para consulta de cirurgia geral em 09/2023 e agendada em 10/2023. Neste momento o atendimento – que pode envolver novas consultas, avaliações e exames –  passa a ser realizado pelo sistema estadual. Porém, em 09/24 foi encaminhada novamente para a regulação municipal com negativa de atendimento do Hospital de Sapiranga (que atende a demanda de MÉDIA complexidade) registrando que a paciente teve episódio de dessaturação (Sat 60%) durante procedimento anestésico, sendo cirurgia suspensa. Conforme prontuários médicos as comorbidades apresentadas pela paciente como hipertensão e diabetes, podem ter contribuído para o encaminhamento para a ALTA complexidade, voltando ao sistema estadual. 

Conforme os registros a paciente esteve em atendimento no Hospital Sapiranga em Abril de 2024 e não teve o procedimento realizado. No entanto o documento “DITA”, necessário para dar o encaminhamento para um novo procedimento foi enviado para a Central de Regulação, via e-mail, no dia 25/09. 

O motivo para este tempo de trâmite não foi informado pelo Hospital Sapiranga, que não é municipalizado.

A Prefeitura de Sapiranga esclarece que a Secretaria Municipal de Saúde recebeu o pai da paciente após a fatalidade. Foi determinada a abertura de uma sindicância investigativa com prioridade. A mesma tramita em sigilo pois tem como base o prontuário da paciente.”

Leia a íntegra na nota do Ministério da Saúde

“O Ministério da Saúde trabalha continuamente para a redução de filas em cirurgias e procedimentos realizados pelo SUS. Nesse sentido, o Programa Nacional de Redução de Filas (PNRF), voltado para cirurgias eletivas, exames complementares e consultas especializadas, e o Programa Mais Acesso a Especialistas (PMAE) têm se mostrado fundamentais para enfrentar esse desafio.

Dados indicam que, até outubro de 2024, foram realizadas 1.065.930 cirurgias eletivas, o que corresponde a 78% da demanda registrada no início do segundo ciclo do PNRF. No entanto, o desafio ainda persiste: a fila inicial para esses procedimentos somava 1.367.132 solicitações.

O PMAE, instituído pela Portaria GM/MS nº 3.492, de 8 de abril de 2024, introduz as Ofertas de Cuidado Integrado (OCI), um modelo que garante o atendimento em uma única fila, da consulta ao início do tratamento. Esse novo formato elimina a necessidade de o paciente aguardar em diversas filas para diferentes etapas do processo, como consultas, exames e retornos. Até 2025, está prevista a oferta de mais de 8,4 milhões de OCIs, contemplando cinco especialidades prioritárias: Oncologia, Cardiologia, Ortopedia, Oftalmologia e Otorrinolaringologia.

Além disso, a gestão das filas foi aprimorada no Mais Especialistas, com a obrigatoriedade de registro de informações como o tempo de espera e o número de pessoas aguardando atendimento. O objetivo é reduzir, por exemplo, o intervalo entre a consulta e o início do tratamento de câncer para até 30 dias. Para outras especialidades, o prazo máximo será de 60 dias.

O PNRF, iniciado em 2023, já permitiu a realização de 648.729 cirurgias no primeiro ciclo (entre março de 2023 e janeiro de 2024), representando 86% da expansão das cirurgias eletivas no país naquele ano. Para o segundo ciclo, iniciado em fevereiro de 2024, a pasta destinou R$ 1,2 bilhão aos estados, de acordo com os Planos Estaduais de Redução das Filas (PERF) apresentados pelos gestores locais.

O Ministério da Saúde reafirma o compromisso de seguir investindo e fortalecendo o SUS para atender às demandas da população e garantir o direito à saúde com qualidade e eficiência.”

Leia a íntegra da nota do MP

“O MPRS atua com diversas ações e inquéritos a respeito das filas de espera na saúde em Porto Alegre e em todo o RS. Algumas específicas, como obesidade mórbida e reabilitação auditiva, um grande inquérito tratando da regulação e cerca de 30 inquéritos tratando de outras especialidades médicas, atuando constantemente para buscar a garantia dos direitos dos cidadãos.”

GZH

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