Por: Alexandre Gonçalves
A cada quatro anos, nós que somos profissionais da segurança pública, somos obrigados a ouvir os mesmos discursos eleitoreiros sobre segurança pública e que nunca saem do lugar comum: compra de viaturas, armamentos, equipamentos, reforma de delegacias, planos de carreira, aumento salarial e alguma inovação no patrulhamento. Juntam-se a isso, os jargões maçantes de que “tem que se investir em inteligência” ou ainda “humanizar a polícia” (só não dizem como). Posso afirmar com toda a certeza que, até o momento, TODOS os que se propuseram a se candidatar à presidência da república, incluindo os atuais candidatos que já apareceram esse ano, não têm nenhuma proposta que de fato vai mudar a segurança pública. E para piorar, esses mesmos candidatos acabam se assessorando de gente que não é da área ou se é da área, são pessoas que fazem parte do problema, que pretendo da maneira mais simples possível explicar doravante nessa miserável série. Então vamos lá!
Todo estudante básico de direito sabe que o crime, principalmente os dolosos (onde há a intenção clara de produzir o resultado) começa com o desejo, a cogitação. Depois disso, pode ocorrer o planejamento, atos preparatórios e o resto todos sabem: execução e consumação. Se existe algo que ajuda em muito para que o ser humano pense duas vezes antes de cometer um crime é a certeza de que será punido por esse crime. O problema é que no Brasil, segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público (2014), a taxa de resolução de homicídios, que é o crime por excelência, pois atenta de maneira fatal o bem jurídico mais importante de nossa sociedade, a saber, a vida humana, é de apenas 8%. Em São Paulo, maior estado do país, o índice de resolução de crimes de homicídio, roubo, estupro e furto ficam em 4%. Isso porque estamos falando de identificação da autoria do crime, mas não estamos falando da punição ao crime, pois esta punição vem muito depois. Como assim? Vamos também entender isso.
Uma patrulha da polícia militar recebe um chamado que um estabelecimento comercial foi invadido por um bandido armado e o dinheiro do caixa foi subtraído. Deslocam-se para o local do crime, isolam a área e acionam a polícia civil da área. No melhor dos mundos, vem a polícia científica, os investigadores e o delegado de polícia. É aberto inquérito a fim de apurar a autoria do crime. Todos serão posteriormente intimados a comparecerem à delegacia de polícia para serem ouvidos (policiais da ocorrência, vizinhos, a vítima, etc). Esse inquérito, que nada mais é que um mini-processo, envolve o delegado, um escrivão, profissional de segurança pública que existe para escrever, digitar e organizar essa papelada toda (isso mesmo) e após, no mínimo (eu disse, no mínimo) 30 dias, caso tenha a autoria definida, é remetido ao judiciário e logo em seguida ao ministério público para que este, a depender da fundamentação das provas descritas no inquérito, ofereça ou não denúncia ao juiz. E aí, o que vai ocorrer? Tudo vai se repetir! Os policiais serão intimados para depor ao juiz, também os mesmos vizinhos, vítima e possível autor. E quanto tempo toda essa repetição ignara pode levar? Anos. E a punição? Pois é, esta pretensão punitiva do estado depende de prazo, pois ela prescreve. E o que ocorre de fato é que as pessoas acabam não sendo devidamente punidas por seus delitos. Qual a consequência disso? Sensação de impunidade. E o que essa sensação de impunidade produz? Incentivo para que se cometam mais crimes, óbvio! E tudo começa de novo e de novo e de novo. Há solução para isso? Claro!
CICLO COMPLETO DE POLÍCIA
Antes de definir o que é o ciclo completo, preciso com urgência dizer em quais companhias o Brasil está em seu modelo anacrônico de polícia. Outrora, três países no mundo não adotavam o ciclo completo de investigação para suas polícias. Eram eles Cabo Verde, Guiné Bissau e Brasil. Agora a lista ficou ainda mais enxuta: Cabo Verde saiu da lista porque a Assembleia Nacional aprovou a modificação. Ou seja, apenas Brasil e Guiné Bissau não utilizam o modelo de ciclo completo de polícia. É uma jabuticaba (aquela frutinha que dizem que só tem no Brasil) que precisamos urgentemente enfrentar. Para entender o ciclo completo, precisamos ainda antes (não me xinguem, sou prolixo, mas explico direitinho) qual a função da polícia.
Quando o crime ainda está na fase de cogitação ou até mesmo na fase de preparação (quando os atos preparatórios não se constituem em crime por si só), a função da polícia é preventiva (função de polícia administrativa). Se o crime já ocorreu, com a sua execução e consumação, a função da polícia é repressiva (função de polícia investigativa). Para entender melhor isso, vamos para a prática.
O policial uniformizado tem a função de prevenir o crime e por isso sua presença é ostensiva (afinal, o bandido não vai cometer um crime vendo uma pessoa uniformizada de policial em sua frente). O policial não uniformizado age, via de regra, após a execução do crime com o fim investigativo. No Brasil (e também na Guiné Bissau), um órgão de polícia trabalha na prevenção (ostensivo) e outro órgão na investigação (não ostensivo). Como vimos anteriormente, esse modelo não está funcionando, visto que as taxas de elucidação (e nem falo de punição, pois estas são ínfimas) são baixíssimas em nosso país, aumentando a sensação de impunidade, sensação esta que aumenta também a vontade de se cometer mais crimes. Eu poderia dar vários exemplos, mas vou fazer uma adaptação de um exemplo bem pedagógico feito pelos policiais federais Adelson Cabral (RS), Antônio Moreira (SC), Magne Cristine (PE) Márcio Ponciano (DF), para que se entenda como esse modelo é amalucado.
Um cidadão, vendo que há um grupo de pessoas suspeitas (gente que não é da região, por exemplo), que demonstram estar se preparando para cometer um crime, liga para o serviço 190. Quando a viatura policial ostensiva chega ao local, os suspeitos não estão mais lá, tendo o cidadão informado que, ao verem a aproximação da viatura da PM, os suspeitos se evadiram. Assim, o cidadão pede para que a PM fique no local porque os suspeitos devem voltar. Os Policiais Militares informam que não podem permanecer no local, para fazer a investigação porque atendem todo o bairro e por isso voltam para o Posto Policial. O cidadão então procura a Polícia Civil, que é quem compete investigar os crimes, e fala sobre a presença de suspeitos na sua rua. Na delegacia da polícia civil é informado que o caso é de atribuição da Polícia Militar, que faz a prevenção, pois a polícia civil compete atuar na investigação dos crimes que já ocorreram. IMPASSE – a polícia preventiva (Polícia Militar) não tem como investigar, pois sua atuação é ostensiva, ou seja, usam farda e veículo que os identificam como policiais, não sendo viável realizar uma investigação de forma discreta e efetiva. Além do mais, é operacionalmente impossível colocar uma viatura por bairro ou por rua. Já a polícia investigativa (Polícia Civil), atua no atendimento, registro e investigação de crimes que já ocorreram. CENÁRIO: O cidadão fica desassistido de uma atuação policial efetiva que evite que o crime venha a acontecer!
Quem ganha com isso? A criminalidade! Outro exemplo para fixarmos bem o assunto (não me apedrejem, pois se você chegou até aqui, merece um prêmio).
A PRF, em uma rodovia federal, aborda um ônibus e faz uma fiscalização nas malas deste ônibus, visto ser de uma linha que vem da fronteira, onde já foram identificados diversos delitos. Encontra em uma mala, 12 pistolas com vários carregadores e farta munição (isso ocorre com uma frequência que não desejamos que ocorra). Uma pessoa que está em um ônibus levando pistolas, apesar de também ser um criminoso, é apenas um pequeno elo em uma corrente grande, onde há o vendedor ou facilitador e o cliente final da mercadoria. O certo seria a PRF, ao perceber as pistolas na mala, deixar o ônibus ir e fazer o acompanhamento tático do veículo, a fim de descobrir o destino dessas armas, investigando todos os elos dessa quadrilha. A realidade é que a PRF não pode fazer isso, pois é polícia ostensiva e, portanto, caracterizada. O que vai ocorrer é que o criminoso e os produtos serão encaminhados à polícia civil ou federal (a depender de onde vem as armas) e, após exaustiva espera para que delegado e escrivão possam atender o flagrante (principalmente se for fim de semana ou na madrugada) ser lavrado o auto de prisão em flagrante sendo, a partir desse ponto, responsabilidade da polícia civil ou federal, investigar o crime. Eu pergunto: isso funciona? Se você disse que não, está de parabéns! Então, o que funciona? Vamos desenhar:
O desenho acima é bem elucidativo e é o que ocorre em 99,9% dos países (o que demonstra que “o errado somos nós”). A polícia ostensiva é a primeira que chega ao local, atendendo a ocorrência do crime. Essa mesma polícia vai confeccionar o relatório policial ou boletim policial, onde ouvirá todas as pessoas no local da ocorrência, coletando os dados de cada um, ouvindo as pessoas da área (as quais ela já conhece pois faz parte da sua área de policiamento) e reduzindo tudo a termo, de forma sucinta e prática. Quem nunca viu nos filmes americanos o policial com um caderninho anotando tudo que ouve das pessoas? Assim, se inicia a investigação imediata do crime através do mesmo órgão policial, sem ter de “entregar a ocorrência” para outra instituição policial que sequer esteve no local da ocorrência quando do início dos fatos. Esse célere relatório policial é encaminhado diretamente ao Ministério Público que, em conjunto com a polícia, pode pedir quebras de sigilo, mandados de busca, de prisão e etc. Ao fim, o MP faz a denúncia direto ao judiciário e este, aceitando a denúncia, dá início a ação penal, onde haverá o amplo direito à defesa. Somente a retirada do inquérito policial (aquele mini processinho, criado no Brasil ainda no período do Império) e o fato de ser o mesmo órgão policial que vai percorrer investigando todas as fases do crime, já temos uma perspectiva de maior elucidação de crimes. Aquela papelada do inquérito policial (quem conhece as delegacias de polícia, sabe do que falo) desaparece. A totalidade dos países democráticos aboliu esses procedimentos cartorários ou de caráter jurídico-processual de suas polícias no âmbito da investigação policial, tendo em vista que quaisquer procedimentos excessivamente burocráticos retardam as diligências e atrapalham o sucesso da devida investigação policial.
FONTE: DISPARADA