É por meio do dinheiro obtido de forma ilegal — especialmente pelo tráfico de drogas — que grupos criminosos se armam, arregimentam novos membros, adquirem entorpecentes e financiam os homicídios. Descapitalizar essas organizações tem sido uma das estratégias adotadas pela Polícia Civil na tentativa de combater as execuções coordenadas pelo crime organizado. Ao menos R$ 30 milhões foram retirados de grupos criminosos em bens e valores apreendidos desde a criação da unidade especializada em rastrear o patrimônio das facções ligadas diretamente aos assassinatos.
Em setembro de 2023, foi inaugurada a Delegacia de Polícia de Repressão à Lavagem de Dinheiro do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Ao longo de pouco mais de um ano, foram apreendidos bens como veículos e imóveis, entre eles até mesmo uma pousada de alto padrão, além de bloqueados valores de contas bancárias.
— Existe toda uma facção por trás que acaba financiando o cometimento desses homicídios. Os alvos são todos grupos vinculados às mortes. No momento que alguém de uma facção comete um homicídio, a primeira coisa que fazemos é verificar se no entorno dele há indícios da existência de um patrimônio oculto, com aparência de licitude, mas que é oriundo do crime. Instauramos inquérito contra ele e contra a facção a qual ele pertence, já que eles atuam de maneira unida — detalha o delegado Marcus Viafore.
Em duas das operações realizadas de forma encadeada, o alvo foi o mesmo grupo, com atuação no extremo-sul de Porto Alegre. A investigação descobriu que foram investidos valores no mercado imobiliário do RS e Santa Catarina, na compra de imóveis e empresas de fachada. Foi apreendida uma pousada de alto padrão em Bombinhas, no litoral catarinense.
— Neste caso, era uma liderança que tinha cometido mais de 10 homicídios no extremo-sul de Porto Alegre. O objetivo é justamente atingir o lado patrimonial para evitar o financiamento dos homicídios. A lavagem de dinheiro está umbilicalmente ligada à organização criminosa. Ela não se sustenta sem isso — afirma Viafore.
Já na Operação Riciclaggio, em novembro deste ano, o alvo foi uma célula de uma facção com berço no Vale do Sinos, mas que atua em todo o Estado. Em Porto Alegre, segundo a polícia, o grupo criminoso é suspeito pelo envolvimento em homicídios na Zona Sul — entre eles, a morte de Camilla Lopes Fruck, 25 anos, vítima de bala perdida no fim de novembro, no bairro Restinga. O atirador que alvejou a jovem seria membro de outro grupo, mas estaria trocando tiros com rivais, integrantes dessa facção.
Durante a operação, R$ 70 mil em notas diversas foram apreendidos numa residência na zona leste de Porto Alegre. As cédulas exalavam um odor peculiar: o de entorpecentes. Para a polícia, é mais uma mostra de que aqueles valores tinham sido obtidos com o tráfico de drogas. A investigação conseguiu expor um esquema envolvendo empresas de fachada, aquisição de veículos e movimentação milionária. As transações financeiras suspeitas, ocorridas de dezembro de 2021 até 2024, chegariam num montante aproximado de R$ 9,2 milhões.
— Nem sempre quem cometeu o homicídio possui patrimônio direto, mas, em muitos casos, está vinculado a alguém da facção que está lavando dinheiro. Há suspeita na última operação de que um dos investigados se usava de empresa de reciclagem para lavar o dinheiro. Eles juntam esse capital obtido de maneira lícita com o dinheiro do tráfico e misturam. Isso é proposital, para poder dificultar a atividade de investigação — detalha o delegado.
Protocolo contra homicídios
A estratégia de investigar as facções envolvidas em homicídios por lavagem de dinheiro faz parte de um protocolo de medidas adotadas pelo DHPP. O entendimento é de que, como os grupos criminosos são responsáveis pela maior parte dos homicídios, devem ser o alvo principal das medidas. Dentro desse protocolo, ações são realizadas em sequência e de forma escalonada contra essas organizações e, especialmente, suas lideranças.
Esse protocolo é acionado sempre que ocorre algum homicídio vinculado ao crime organizado. Essa medida foi implementada, por exemplo, depois da execução de um preso dentro da Penitenciária Estadual de Canoas (Pecan). Além do homicídio em si, um segundo inquérito por lavagem de dinheiro foi aberto contra a facção envolvida na morte.
— Essa delegacia especializada se tornou mais um instrumento de combate aos grupos criminosos e, por consequência, de redução dos homicídios. Ao longo desse período, foram R$ 40 milhões apreendidos por todo o DHPP. Isso demonstra a importância de termos uma unidade especializada em lavagem de dinheiro. Fez o total de valores apreendidos saltarem — avalia o diretor do departamento, delegado Mario Souza.
As formas mais comuns de lavagem de dinheiro
- Aquisição de automóveis em nome de parentes ou “laranjas”
- Compra de imóveis, como apartamentos, casas, fazendas em nome de terceiros
- Empreendimentos empresariais, tanto de fachada como em empresas que realmente existem, mas onde o capital é misturado ao do tráfico
- Pequenos comércios, como mercadinhos, onde o dinheiro do tráfico ingressa como se fosse o faturamento do estabelecimento
O perfil dos envolvidos
Em muitos casos, a polícia depara com pessoas que não têm histórico criminal — no jargão policial, “voam fora do radar”. São os operadores financeiros e comerciais dentro do grupo criminoso. Na Operação Capolinea, por exemplo, em setembro deste ano, havia um operador no RS e outro no litoral catarinense. O de Santa Catarina fazia a negociação dos imóveis da facção, realizando contatos com imobiliárias para comercializar os imóveis.
O destino dos bens
Os bens apreendidos ficam retidos durante o processo de lavagem de dinheiro, até o trânsito em julgado. Existe decreto no RS (53.332/2016) pelo qual os ativos financeiros obtidos a partir de investigações da Polícia Civil devem ir para a instituição. O destino, no entanto, depende de decisão judicial. Em alguns casos, o Judiciário remete os bens para a Justiça Federal, onde são realizados leilões pela União.
Métodos complexos
A investigação de lavagem de dinheiro se utiliza de diversos métodos, alguns mais sofisticados. Entre as técnicas usadas, estão quebras de sigilo (bancário, fiscal, de bolsa de valores, ações), extração de dados de aparelhos celulares, análise de dados por meio de softwares para cruzar essas informações coletadas e apresentar relatórios que evidenciem as provas. Na Polícia Civil, existe um laboratório contra a lavagem de dinheiro, que cruza os dados e elabora relatórios.
— A lavagem, no início, era muito mais rudimentar. Muitos pegavam os bens e colocavam no nome da mãe. Hoje em dia, há estruturas empresariais, doleiros, correspondentes em outros Estados. Existe uma teia nacional, um sistema financeiro informal que lida com esse dinheiro. A investigação de lavagem, por sua própria natureza, não é rápida, é demorada, detalhada. A gente usa de um amplo espectro de meios investigativos para chegar à autoria dos crimes — diz Viafore.
O caminho do dinheiro
Existem diferentes caminhos que o dinheiro pode percorrer no esquema de lavagem. Nos mais sofisticados, o montante do tráfico é enviado para uma empresa, de fachada ou fantasma, que repassa o dinheiro para fora do Estado. Os valores são remetidos, algumas vezes, para as zonas de fronteira do Brasil e atravessados para outros países. Dali, pode ser encaminhado até mesmo para paraísos fiscais. Esses montantes podem retornar para o Brasil, com aparência de licitude, investimentos.
— É um dinheiro que vai ser muito difícil conseguir achar o rastro sujo. Já passou por tantas operações financeiras, comerciais, que está muito distante da sua origem ilícita — afirma Viafore.
Pena
Para a lavagem de dinheiro, a pena prevista é de três a 10 anos de reclusão.
Outros departamentos
O DHPP não é o único departamento da Polícia Civil que possui delegacias especializadas no combate à lavagem de dinheiro. Há unidades no Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc) e no Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic).
O Denarc realizou recentemente operação contra uma facção do Vale do Sinos, na qual foram sequestrados imóveis, entre eles 15 fazendas, que seriam usadas pelo grupo, três delas inclusive com pistas de pouso para o tráfico de drogas com uso de aeronaves.
O Deic e o Ministério Público realizaram na semana passada operação que evidenciou um suposto esquema envolvendo empresários, políticos, agentes públicos e criminosos ligados à mesma facção com base no Vale do Sinos. A Operação Confraria investiga a suspeita de corrupção, fraudes em licitações e lavagem de dinheiro na prefeitura de Parobé, no Vale do Paranhana.